Nesse último final de semana, o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães (MT) recebeu as comemorações do projeto “10 picos,10 travessias” em homenagem aos 10 anos de existência do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A Travessia da Casa do Morro, com 23 quilômetros, e a subida ao Morro do São Jerônimo, a 805 metros de altitude, reuniram cerca de 30 pessoas e chamaram atenção para roteiros ainda pouco explorados da Chapada dos Guimarães.
Gestora do parque há mais de 4 anos, a bióloga Cíntia Brazão participou da travessia e reforçou a importância do uso público como aliado da conservação: “As áreas que têm uso público são as que nós menos nos preocupamos, porque tem gente circulando e qualquer problema o visitante se manifesta. Onde não tem gente, são só os nossos olhos, e eles são poucos”. Ano passado o parque recebeu mais de 150 mil visitantes, mas a maioria dos turistas fica restrito às áreas de cachoeira próximas ao Véu de Noiva, cartão-postal da unidade de conservação mato-grossense. De acordo com Cíntia, com a possível concessão de serviços dentro da unidade, uma das expectativas é melhorar a infraestrutura de visitação e criar novas trilhas e atrativos.
Leia a entrevista que o WikiParques fez com a gestora:
WikiParques: Qual a importância de dar essa visibilidade aos atrativos da travessia e do Morro de São Jerônimo?
Cíntia Brazão: Antes de abrirmos a travessia, há dois anos, o Morro de São Jerônimo era o atrativo menos procurado do parque. Por conta da distância e não da dificuldade em si: são cinco a seis horas de caminhada. A mesma coisa acontece com a travessia, poucas pessoas estão dispostas a percorrer os 23 quilômetros de trilha. Nós podemos receber até 36 pessoas por dia hoje no Morro, mas são poucas as vezes que nós alcançamos a capacidade máxima — só quando vêm grupos de academia ou de corrida de aventura. Mas ainda é uma demanda baixa, devido ao calor, à exposição ao sol e à ausência de um ponto de banho no meio do percurso. Esse ainda não é um público que procura o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães.
Nós estamos perto de Cuiabá, que é uma cidade muito quente, e as pessoas costumam procurar o parque para tomar banho de rio e de cachoeira. Esse evento dos “10 picos, 10 travessias” é importante para dar visibilidade a estes atrativos para que as pessoas descubram que existem outras opções no parque. Dessa forma conseguiremos agregar outro público.
Quais os números de visitação do parque? E como é feito o controle?
Em 2016, nós tivemos 156 mil visitantes. E até maio desse ano já foram 66 mil. E só hoje, (domingo, 09/07) no Véu de Noiva, recebemos 1.300 pessoas. Nós possuímos um sistema de reserva com um parceiro: o Ecobooking. Através dessa plataforma nós conseguimos fazer o controle de capacidade de carga do parque e de cada atrativo. Com o edital para o Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) e uma possível concessão de serviços no parque, a nossa expectativa é aumentar a capacidade de carga de alguns atrativos. Porque eu tenho uma capacidade no Rio Claro, por exemplo, de 48 pessoas por dia. Mas são 48 pessoas no mesmo momento naquele lugar. Eu posso manter 48, mas se alguém fizer o controle de entrada e saída, é possível permitir que mais pessoas acessem o atrativo no mesmo dia. Se saíram 10, podem entrar mais 10.
Quais as expectativas a possível concessão de serviços na unidade?
Foram nove empresas interessadas e nove propostas que apareceram antes da habilitação. Três foram desabilitadas logo no início por estarem fora do contexto do edital e seis demonstraram interesse em continuar no processo [o prazo final para entrega das propostas encerrou no sábado 08/07]. Desde 2009, quando foi publicado o Plano de Manejo, é uma expectativa de todos os servidores fazer a concessão de serviços no parque para receber os visitantes com melhor qualidade. É um parque super demandado, tanto pelas pessoas de Cuiabá quanto de Chapada. E nós vemos a necessidade de dar um suporte maior aos visitantes. A expectativa é que alguns atrativos possam se tornar muito mais acessíveis do que são hoje. Com a construção de trilhas suspensas, por exemplo, para diminuir a declividade, uma vez que o terreno do parque é muito acidentado. Com isso, facilitamos o acesso de outras pessoas. Isso seria possível em pelo menos uma parte do Circuito das Cachoeiras; na Cidade de Pedras, onde poderíamos fazer um deque; e no Rio Claro, com um transporte interno que fosse oferecido pelo concessionário. Esse transporte inclusive poderia ser feito em outros atrativos, até mesmo no deslocamento para o Véu de Noiva. A cobrança de ingresso, que hoje não ocorre, também é uma grande possibilidade com a concessão. Assim como ter uma lanchonete e uma loja de souvenirs.
Tecnicamente, hoje existe uma lojinha e um restaurante do lado da nossa sede. Mas eles não são nossos, são de um posseiro. Esse é um processo judicial que tramita há uns 20 anos na Justiça. Mas nós esperamos que, em breve, haja a reintegração de posse desse local. Assim como houve a reintegração das áreas do Cachoeirinha e da Cachoeira dos Namorados em 2014, que se tornaram o segundo atrativo mais visitado do parque.
A presença do guia é obrigatória para visitação da maioria dos atrativos. É feita alguma capacitação dos guias credenciados para atuar no parque?
Para qualquer atrativo, o guia antes precisará fazer um curso básico para entender o que é o parque, o ICMBio, o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação), as leis de crime ambiental e todo o contexto em que a unidade de conservação está inserida. Depois é feita a capacitação do guia no atrativo. Em alguns atrativos essa capacitação também pode ser feita por outro guia mais experiente. No caso da travessia, nós fazemos a travessia inteirinha com eles, dormimos na Casa do Morro, explicamos como funciona o banheiro seco e a logística da alimentação. Desde que saiu a Portaria de credenciamento dos guias, nós cadastramos cerca de 200 pessoas, mas dessas apenas 60 são realmente atuantes.
Existe alguma perspectiva em sinalizar as trilhas para dispensar a obrigatoriedade do guia?
O nosso objetivo é abrir todas as trilhas de forma autoguiada. Independente de concessão ou não. Nós estamos trabalhando nisso, estruturando os atrativos de forma mínima para que eles possam ser autoguiados e que as pessoas possam circular sem obrigatoriedade do guia. Hoje em dia apenas o Véu da Noiva, e a Cachoeirinha e Cachoeira dos Namorados podem ser feitos sem guia.
De que forma o uso público pode ser um aliado importante para conservação do parque?
As áreas que estão ocupadas e têm uso público são as que nós menos nos preocupamos dentro do parque. Porque tem gente circulando, então qualquer problema o visitante irá mandar um e-mail, ligar. Pelo próprio ecobooking eu tenho o feedback da visitação. Eu sei o que está acontecendo onde tem gente. Onde não tem gente, nós dificilmente sabemos. Porque aí são só os nossos olhos, e eles são poucos, somos apenas cinco servidores no parque. A nossa equipe é reduzida e a demanda é gigantesca. Nós estamos do lado da capital. Aliás, 62% do parque está em Cuiabá, apenas 38% no município de Chapada. A expansão urbana está vindo toda para cima do parque. Ano passado nós tivemos um problema grande na comunidade de São Jerônimo com uma invasão que parou a 150 metros do parque. E só parou porque íamos todo mês na organização dos Sem-Teto falar que eles não podiam entrar no parque.
Outro dia fizemos vistoria em uma área que ainda não foi regularizada e eu me questionei sobre o que iria acontecer ali. Nós teremos que transformá-la em área de uso público, porque se não for local de visitação, não terá ninguém andando e eu vou indenizar, tirar a casa, e daqui a pouco haverá outra pessoa. Ou seja, vou ter que fiscalizar semanalmente para evitar que alguém invada. O uso público é o melhor caminho para ter gente circulando nesses lugares e fiscalizando de forma orgânica.
Quanto do parque é aberto para visitação?
Muito pouco. Aproximadamente 5% do total. É uma área pequena e muito restrita. Com exceção do Vale do Rio Claro e da Cidade de Pedras, todos os atrativos se concentram próximos ao Véu da Noiva e da nossa sede administrativa. Isso se deve principalmente à falta de capacidade de fazer o manejo e controle de novos atrativos. O parque não tem muita zona intangível, apenas a parte baixa do Véu de Noiva e alguns topos de morro. A maior parte é zona primitiva, o que permite o uso público tranquilamente. No próprio Plano de Manejo do parque existem várias propostas de outras trilhas, inclusive uma que sai próxima do Véu de Noiva e vai até a Cidade de Pedras a pé. Pensando na concessão, de acordo com a proposta apresentada e se for efetivada a concessão, nós podemos tentar abrir outras áreas para visitação. Essa é uma preocupação minha, inclusive.
Como está a situação da regularização fundiária no parque?
Hoje 50% do parque ainda precisa ser regularizado. Não são áreas grandes, são pequenas propriedades, onde os donos não apresentam documentação para poder instruir o processo de regularização da questão fundiária. E são áreas de lazer, nós não temos moradores dentro do parque. Quem mora dentro do parque é o caseiro. São pessoas com uma situação financeira boa que moram em Cuiabá e possuem uma chácara dentro do parque. Tirando essas áreas pequenas, que giram em torno de 10 a 100 hectares, no máximo, existe uma grande fazenda de 3 mil hectares. Com essa fazenda o problema de documentação é maior porque envolve o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Tem lugar que você vai em um dia e explica tudo ou até autua a pessoa por algum crime ambiental que ela cometeu na área. Passam três meses já tem uma outra pessoa, aí você precisa explicar tudo de novo. Mais três e já tem uma terceira pessoa lá. As áreas de posse não mantêm as pessoas. A rotatividade é muito grande. E a construção é muito rápida. Eles vêm com casas pré-montadas e do dia para noite você tem uma casa em uma área que ainda não foi indenizada, de alguém achando que não tem dono ali. Nós pedimos os documentos da propriedade e a pessoa some e nunca mais aparece. Aparecem títulos voadores e até documento falso já apareceu.
Uma saída que nós arrumamos, há uns seis anos, foi colocar placas informativas. Onde ainda tem casa dentro do parque que precisa ser regularizada, existe uma placa na entrada da estrada de acesso dizendo: “Antes de vender, comprar ou reformar, ligue para o parque nacional”. E as pessoas ligam e nós explicamos a situação daquela área. Por imagem de satélite nós sabemos o que foi construído posterior à criação do parque e se aquilo é uma posse ou se a pessoa é proprietária, de fato, de uma área ainda não indenizada, o que lhe dá o direito constitucional da venda, mas que não poderá ocorrer nenhuma alteração ali. E as pessoas vão entendendo. Foi uma saída prática, de baixo custo, e que diminuiu muito do trabalho que nós tínhamos.
Quanto aos incêndios florestais que ocorrem na unidade, quais as principais causas?
Todo incêndio que chega no parque é antrópico, causado pelo homem. Nós temos pouquíssimos registros de fogo causado por raio e normalmente quando eles acontecem é em dezembro, com as chuvas, e aí ele acaba rápido. O pânico com os incêndios florestais começa a partir de julho, quando para de chover, o vento do meio-dia é forte e faz um calorão. Nós falamos que é o vento do fogo. É um problema que acontece todo ano. Nós estamos na beira de uma estrada, que é entrada para qualquer coisa. São 26 quilômetros de estrada que ou limitam ou estão dentro do parque. Existe a pessoa que faz churrasco, joga o carvão no rio e esquece que está cheio de mato seco; quem acampa em lugares não autorizados e não percebe que largou uma fogueira ainda acesa; e as oferendas religiosas com vela, para citar alguns exemplos. Em menor escala existem os fogos oriundos de propriedades do entorno, mas esse hoje é um problema pequeno porque nós fazemos um trabalho anual de conscientização com as comunidades e nos colocamos à disposição para orientar a queima controlada autorizada.
Quais as técnicas adotadas pelo parque para combater esse problema?
Nós temos uma equipe de 30 brigadistas por ano, a partir de maio, quando começa o risco maior dos incêndios. Em 2016 queimaram 3.832 hectares, pouco mais de 10% da área total do parque. Nesse ano nós recebemos um novo servidor para assumir a gerência do fogo, um cargo que estava sem ninguém há quase três anos. Esse é um reforço importante para o combate aos incêndios florestais e para aplicação do Manejo Integrado do Fogo (MIF), que adotamos pela primeira vez esse ano. Nós manejamos duas áreas para proteção, uma delas próxima ao abrigo da travessia, a Casa do Morro, e outra na beira da estrada. Nesta última, em especial, é muito importante ter essa queimada controlada porque todo ano queima. Ano passado foram três incêndios, em lugares e proporções distintas. E tanto em 2016 quanto em 2010 esses incêndios quase queimaram a sede do parque. O fogo vai muito rápido da área da Mata Fria em direção à sede. Portanto é um local que precisa ter esse manejo e cuidado especial. O MIF é importante para proteger áreas úmidas e veredas. E, no caso da Mata Fria, também é para tentar proteger uma matinha que queima todo ano e está indo embora, sendo substituída por campo. As áreas que nós estamos mapeando para o manejo são aquelas nas quais entra fogo todo ano, porque a barreira precisa ser ali, para evitar que o fogo entre no parque.
Como funciona o voluntariado no parque?
O voluntariado no parque voltou a ser ativo em 2013 e a procura é grande. Os nossos voluntários trabalham no apoio ao uso público dentro da unidade: ajudando o visitante que chega, tirando dúvida, acompanhando escolas. Nós temos vinte voluntários fixos, de Cuiabá e de Chapada, que normalmente vêm no final de semana e nos feriados, e estão constantemente nos apoiando. E nós também recebemos outras pessoas, de outros estados, das quais nós exigimos a permanência mínima de 30 dias, pelo investimento que nós fazemos na capacitação do voluntário.