No último final de semana, o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (MA) foi o palco de uma travessia comemorativa de 50 quilômetros que cruzou as dunas e lagoas da unidade. O evento reuniu servidores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), guias voluntários e turistas em comemoração aos 10 anos do órgão ambiental, responsável pela gestão das unidades de conservação (UCs) federais. A ação deu visibilidade ao trekking dentro do parque, uma atividade ainda pouco explorada e conhecida por lá.
Entre os participantes da travessia estava o gestor do parque, o advogado Adriano Damato. À frente da unidade de conservação desde 2012, Adriano comemorou a caminhada de três dias realizada dentro dos Lençóis. O parque, que em maio aprovou uma Portaria para restringir o acesso de veículos particulares, luta contra a presença irregular de carros e quadriciclos na unidade. Segundo o gestor, a presença dos caminhantes pode ser um poderoso aliado para coibir os infratores. “Em um momento de conflito e pressão política de pessoas que querem implementar a atividade de rali a qualquer custo e de qualquer jeito, nós estamos tentando levantar, em contraponto, a bandeira do trekking”, conta. Outro aliado destacado pelo gestor é o trabalho voluntário, que começou em dezembro do ano passado.
Veja a entrevista que o WikiParques fez com Adriano Damato:
WikiParques: A Travessia dos Lençóis Maranhenses foi uma das escolhidas pelo ICMBio para as comemorações dos dez anos do órgão ambiental. O que isso significou para o parque?
Adriano Damato: A proposta de aniversário do ICMBio de realizar uma travessia de caminhada veio de encontro com várias coisas que estão acontecendo no parque. Mês passado nós publicamos uma portaria, que substitui a Portaria nº 63/2010, sobre o credenciamento de veículos. Com a nova portaria [Portaria nº 199/2017] houve uma restrição expressiva ao acesso de carros particulares, dando ênfase na sustentabilidade do parque, nos passeios de trekking e na integração das caminhadas com os carros credenciados.
A maioria das pessoas sequer sabe que existe essa opção da caminhada de longa duração aqui. Nós organizamos essa travessia comemorativa como um chamativo para criar um produto dentro do parque, integrando credenciados com o trekking. Nós contratamos dois carros credenciados para saírem do ponto de encontro, em Barreirinhas, e nos levarem até o ponto de início da caminhada, na Lagoa Bonita. De lá, o grupo partiu para caminhada até Baixa Grande e Queimada dos Britos e, ao final, seremos resgatados por mais três carros credenciados no ponto de apoio, na Lagoa da Betânia, que marca o fim da travessia. Essas são atividades previstas no Plano de Manejo, mas pouco exploradas comercialmente e turisticamente. Caminhar num lugar desses é uma atividade de contemplação, em sintonia com o que prevê o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que diz que unidades de conservação de proteção integral, como os parques, são de uso indireto. Em um parque nacional, a visitação acontece para contemplar a natureza. A atividade de contemplação está mais alinhada com o trekking, com o kitesurf, com a bicicleta, onde você tem um contato direto, porém com a menor agressão possível. Em um momento de conflito e pressão política muito forte de pessoas que querem implementar a atividade de rali a qualquer custo e de qualquer jeito, nós estamos tentando levantar, em contraponto, a bandeira do trekking, que envolve muito mais atores, tanto moradores quanto pequenos empresários e guias. A travessia comemorativa foi realizada com o objetivo de dar essa visibilidade à caminhada como opção de turismo dentro do parque.
Qual o potencial do trekking dentro do parque?
Essa é uma coisa interessante. Nós estamos no primeiro feriado da alta temporada e estamos em um dos momentos mais lindos do parque nos últimos 5 anos, com as lagoas cheias. As cidades de Barreirinhas e Santo Amaro, as principais portas de entrada pros Lençóis, estão lotadas. Mesmo assim, durante a travessia nós não vimos ninguém, nenhum quadriciclo ou carro passando. Isso acontece devido a presença de um grande grupo de trekking, como o nosso, com cerca de 30 pessoas, entre elas servidores do ICMBio. A notícia circula e entra em conflito com esses outros interesses e eles saem. É preciso criar um uso que vai de dentro para fora. Onde os próprios infratores terão vergonha de vir de carro para um lugar onde haverá gente caminhando. Quanto mais caminhantes, maior a chance de afastar esses outros usos irregulares.
O apoio que ganhamos para realizar essa travessia reflete o reconhecimento local para atividade. O nosso grupo teve mais de 10 guias trabalhando de forma voluntária e prestigiando a caminhada, exatamente pela importância que eles veem em divulgar essa prática. Uma diária de guia aqui gira em torno de 200 reais e ter a ajuda deles de forma voluntária foi essencial. Sem falar do apoio dos patrocinadores locais, que gostaram da ideia e juntos contribuíram com 1.600 reais para cobrir os custos com transporte, hospedagem e alimentação.
O parque tem trabalhado muito com o voluntariado entre os próprios guias. Como começou isso?
O voluntariado entre os guias começou meio ao contrário aqui. Isso porque a maior raiva dos guias de trekking e dos seus clientes é encontrar um comboio de carros, quadriciclos, pirando nas dunas no meio da caminhada. E o pessoal sempre aparecia com fotos para mim “Olha, Adriano, o que eu flagrei”. Mas o guia não tem fé pública, não é um servidor, e não havia meios de confirmar onde havia sido tirada aquela foto. Há lugares fora dos limites que você jura que é parque, porque é o mesmo cenário. Então eu não podia levar aquele registro adiante, porque eu não tinha meios de saber onde havia sido tirada aquela foto, nem mesmo quando. Até que um dia nós decidimos capacitar voluntários para manusear o aplicativo Wikiloc e foi uma verdadeira revolução. Um aparelho de GPS é caro, já o aplicativo, não tem esse custo, qualquer smartphone pode baixá-lo. E ele funciona desvinculado da rede telefônica, ou seja, mesmo em um lugar onde não há serviço de telefonia, o GPS está operante no celular. Ou seja, o nosso voluntariado cresceu atrás dos guias.
Quais os objetivos e como funciona esse trabalho de voluntariado?
A pessoa que faz o trekking e está todo dia indo pro parque tem que registrar as coisas mais importantes ao parque nacional, que são a conservação da biodiversidade e o uso público. Com isso, desenvolvemos as três missões do nosso voluntariado. A primeira é registrar os encontros com a pininga (Trachemys adiutrix), uma tartaruga do deserto que possui um código genético endêmico nos Lençóis, diferente das piningas de outros lugares. Se o voluntário encontrou uma pininga, ele tira uma foto dentro do aplicativo, onde ficam georreferenciadas as coordenadas daquele ponto. Hoje nós temos 33 guias de trekking que também são voluntários, se todos eles registram onde estão as piningas, isso se torna um instrumento de gestão para falar “aqui não pode ir de carro, porque encontraram 100 piningas”. A segunda missão é registrar, fotografar e marcar o ponto de ovos e ninhos de aves. Assim podemos entender em que período as gaivotas aparecem mais e quais épocas do ano exigem mais cuidados. A terceira missão é a mais delicada porque pode colocar os voluntários em risco. É registrar o público na unidade, o que inclui registrar a presença de um carro onde não deveria. Ele não está lá para fotografar só o carro, ele está lá para registrar o uso público. Ele não é um fiscal, não vai perseguir ninguém, mas está registrando os visitantes. Esse trabalho voluntário no parque começou em dezembro e hoje nós temos 33 voluntários. A expectativa é aumentar para 50 ano que vem.
Quais têm sido os impactos do trabalho do voluntariado?
O trabalho do voluntariado tem filtrado quem é de má-fé e quem é apenas desinformado. Outro dia flagraram uma pessoa cobrindo a placa do seu carro para entrar na duna. São altos carros 4×4, de luxo mesmo, e o cara colocando uma faixa na frente da placa. Essa pessoa está ali de má-fé. Diferente de alguém que, por ausência de uma sinalização, entrou no parque de carro sem saber. Quem é mal-intencionado está cobrindo as placas dos seus veículos para continuar entrando, porque sabe que tem gente fotografando. O “ralizeiro”, como nós chamamos quem quer entrar nas dunas para desafiar os carrões que eles têm, é um dos nossos principais conflitos de uso. Esse é um uso que, com a infraestrutura que nós temos, não dá para conciliar. Em seis meses de trabalho, já está mais identificável quem nós temos que combater. E nós recebemos agora um quadriciclo, doado através de compensação pela empresa Ômega, de energia eólica, que apoiará e facilitará o trabalho dos voluntários no parque.
Como é a fiscalização no parque e como está sendo a fiscalização do cumprimento da nova Portaria, em particular?
A nossa equipe é composta por dois analistas ambientais e um técnico, incluindo eu. São apenas três pessoas. Mesmo com a ajuda dos voluntários, é bem difícil fazer essa fiscalização. Fora a logística do acesso e o fato de que existem milhares de entradas para o parque. Estamos longe do ideal.
Quanto à Portaria, nós ainda não demos início efetivo à fiscalização. Muitas pessoas têm ligado para nós em busca de informações sobre as novas regras e nós estamos fazendo um trabalho de divulgação na porta da balsa, em Barreirinhas, onde fica a nossa sede administrativa. Estamos espalhando as informações. Em setembro haverá um evento de kitesurf da Red Bull e uma das contrapartidas foi a produção de seis placas grandes, que servirão para orientar os visitantes sobre as normas de acesso. Faremos primeiro o trabalho de divulgação. Não vou sair multando todo mundo, até porque nós não teríamos pernas para lidar com essa quantidade de processos. Eu preciso fazer um trabalho educativo antes, para diminuir a minha carga de autuações e conseguir manter o fluxo do escritório. A nossa primeira ação será a instalação dessas placas, que ficam prontas terça-feira (20). Duas delas ficarão em Santo Amaro, onde há maior registro do problema; uma em Baixa Grande; uma em Queimada dos Britos; e as outras duas nas balsas de acesso.
Mais de 5 mil pessoas vivem dentro do parque, sendo aproximadamente 80 na área dos Lençóis. Existe alguma perspectiva quanto à questão fundiária na unidade?
A regularização fundiária é um problema comum em unidades de conservação no Brasil. O Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses é de 1981 e desde a sua criação nunca foi feito nada com relação à questão fundiária. Em 2012, nós montamos a Operação Scanner em que dividimos o parque em quadrantes e passamos o scanner em todas as famílias que vivem lá. A cada família, nós montamos um processo para regularizar sua situação. É isso que precisa ser feito para avançar no fundiário. O objetivo da operação é mapear o parque. Em Canto dos Lençóis, por exemplo, são 13 famílias. Eu fui em todas e já estão abertos os processos para o governo decidir o que fazer. Se vai indenizar, criar um mosaico, desafetar… Estamos cadastrando as famílias e criando pequenos acordos até que seja tomada uma decisão por parte do governo. Está lá no painel: esse aqui é criador de porcos; esse outro tem aptidão para o turismo; esse nem é de lá, é de Barreirinhas, e tem uma cabana. E vamos vendo caso a caso. Até hoje nós só cadastramos Baixa Grande, Canto dos Lençóis e a Ponta do Mangue. Os três estão lá, com os processos montados, com o meu parecer sobre o que deve e não deve ser feito, aguardando a decisão do governo. É lento, mas está andando.
Na sua opinião qual a melhor solução para resolver a questão fundiária?
Isso varia muito de família para família e de povoado para povoado. Dentro do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses existem 42 povoados. E cada local tem um contexto diferente, que exige esse olhar individual. O ideal é manter o status de proteção da área, garantido por uma unidade de conservação, mas se for necessário desafetar alguma parte do parque, que ele seja ampliado para outra. Existem lugares com grande importância para biodiversidade onde não tem ninguém e que estão fora do parque. Eu tenho alguns desenhos com essa proposta de alteração dos limites, onde haveria uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), uma Reserva Extrativista (Resex) e um Monumento Natural (MoNa), que formariam o Mosaico dos Lençóis Maranhenses. As unidades funcionariam de forma integrada. O pessoal da Resex, por exemplo, poderia utilizar o parque para fazer turismo de base comunitária, e por aí vai. Existem mil ferramentas possíveis. O SNUC é complicado, mas ao mesmo tempo ele nos fornece ferramentas adaptáveis a qualquer situação, seja através de recategorização ou de zoneamentos. Mas tudo precisa ser estudado caso a caso. Seria um desperdício desvincular uma família como a da Dona Odete (que serve de ponto de apoio de hospedagem e alimentação para os turistas) dos Lençóis. Porque o visitante se encanta com essa vivência.
Como é a visitação no parque?
Nós fazemos uma estimativa, de acordo com o número de pessoas que pegam a balsa, em Barreirinhas, onde está a sede. Nós não fazemos o controle de entrada em Santo Amaro ou na outra balsa ou de quantas pessoas foram para praia direto de barco e entraram no parque. A estimativa de 44 mil visitantes por ano é baseada apenas em uma única entrada, portanto é um número subestimado, o número mínimo, por assim dizer, de visitantes que estão indo ao parque. A visitação real com certeza é bem maior. Além disso, existem cerca de 400 guias credenciados para atuar no parque.
Existe alguma expectativa para concessão de serviços dentro do parque?
Em janeiro foi aberto um edital para concessão de serviços e quatro empresas se candidataram para vir ao parque, fazer os estudos de viabilidade econômica e propor serviços ao ICMBio. O prazo das propostas encerra dia 8 de julho. As propostas serão avaliadas de acordo com o Plano de Manejo e com o que é pertinente dentro do contexto da unidade. O que mais é cobrado aqui, e que nós nunca tivemos capacidade de operacionalizar, é o passeio de quadriciclo. Existe muita demanda e, se for feito de forma controlada, é possível conciliar com a UC. O problema é que pela extensão do parque e pela mobilidade que o quadriciclo tem de sair da rota, nós nunca conseguimos estruturar essa demanda de uma forma adequada. Mas é um serviço que poderia ser concessionado e, obviamente, controlado através de ações de fiscalização e medições de impacto dos passeios.