A Reserva Biológica Poço das Antas (RJ) foi a primeira reserva biológica (Rebio) do Brasil. Criada em 1974, a unidade desempenha um importante papel na conservação do habitat das populações remanescentes do mico-leão-dourado, espécie ameaçada de extinção. Em parceria com a Associação Mico-Leão-Dourado, o trabalho de recuperação da espécie virou referência mundial em conservação. Agora, diante do surto de febre amarela que recentemente chegou à Casimiro de Abreu, município fluminense a menos de 30 quilômetros da unidade, todos os dedos estão cruzados para que o vírus não avance para dentro da reserva.
Gestor da reserva biológica há sete anos, o engenheiro florestal Gustavo Peixoto conta que foi feita uma vacinação em massa nas comunidades do entorno e que todos as equipes da reserva foram obrigados a se vacinar. Segundo ele, é preciso “proteger as pessoas porque nós não sabemos se o vírus está circulando dentro da unidade; e também proteger os animais da Rebio, porque nós sabemos que o vírus está circulando do lado de fora”. O gestor falou também sobre a importância de Poço das Antas como um dos refúgios florestais remanescentes de Mata Atlântica. “O mico-leão-dourado é a nossa espécie bandeira, quem nos dá mais visibilidade, mas existe uma grande diversidade de espécies que vivem aqui”, acrescenta Gustavo.
Leia a entrevista que o WikiParques fez com Gustavo Peixoto:
WikiParques: Como funciona uma Reserva Biólogica? Quais as principais diferenças de outras categorias de unidades de conservação?
Gustavo Peixoto: A grande diferença da reserva biológica para um parque nacional é a falta da visitação. Uma Rebio é aberta apenas para educação ambiental e pesquisa científica. É feito um zoneamento, definido pelo Plano de Manejo da unidade, que prevê as áreas de uso intensivo, como trilhas e administração; áreas de uso restrito; e áreas de recuperação. O turismo, porém, não é permitido em nenhum lugar da reserva. É uma categoria de unidade de conservação bem mais restritiva quanto às atividades que ocorrem dentro dela.
O Sistema Nacional de Unidades de Conservação [SNUC] possui categorias para atender a todos os objetivos. E o objetivo da reserva biológica é preservar a fauna e flora, com a menor interferência humana possível. Por isso a visitação não é permitida. Mal ou bem, os visitantes causam um impacto nos parques. Os parques, inclusive, possuem também áreas intangíveis, porque é necessário coordenar a visitação para preservar áreas naturais. No caso das reservas, o objetivo é garantir que o território como um todo permaneça o mais natural possível.
Quais as iniciativas de educação ambiental e de pesquisa existentes dentro da Reserva Biológica Poço das Antas?
Esse é um trabalho desenvolvido pela Associação Mico-Leão-Dourado, principalmente com as escolas do entorno da unidade, nos municípios de Silva Jardim, Casimiro de Abreu e Rio Bonito. O ICMBio, em si, não possui uma equipe própria para desenvolver educação ambiental. São realizadas uma série de atividades nessa frente de educação ambiental, desde a visitação dos alunos dentro da reserva, na nossa trilha interpretativa, à presença da Associação nas escolas e organização de eventos educativos em datas especiais.
Quanto à pesquisa científica, no momento existem mais de 50 pesquisas autorizadas pelo ICMBio sendo realizadas aqui na reserva. Algumas pesquisas são muito interessantes para unidade porque nos ajudam no manejo da reserva, como a pesquisa com o mico-leão-dourado. Nós acompanhamos e monitoramos as atividades desenvolvidas, pegamos os resultados e tentamos aplicar ao manejo da unidade.
A reserva faz parte do Mosaico do Mico-Leão-Dourado. Qual a importância dessa configuração e gestão conjunta de unidades para conservação?
O Mosaico de Unidades de Conservação é uma ferramenta para somar esforços. Nós aqui enfrentamos algumas dificuldades, a APA da Bacia do Rio São João, que fica sediada conosco dentro da reserva, também tem os seus problemas, assim como a Rebio União e por aí vai. A ideia do mosaico é juntar estas três unidades do ICMBio, no âmbito federal; com as prefeituras de Silva Jardim, Casimiro de Abreu, Cabo Frio e Macaé; com o governo do estado, responsável pelo Parque Estadual dos Três Picos; cada um com as suas possibilidades e unir forças para tentar proteger essa região de uma forma mais territorial. Para ir além dos limites da nossa unidade de proteção integral e gerir o território de uma forma mais ampla em prol do objetivo comum de conservação.
O mosaico está estabelecido exatamente na área de ocorrência do mico-leão-dourado. É essencial estar todo mundo integrado para o estabelecimento de corredores ecológicos, de áreas prioritárias para recuperação e outras ações conjuntas fundamentais para preservação da espécie. Às vezes, o replantio em uma área degradada de uma das unidades permite a criação de um corredor ecológico que irá se conectar a uma nova área de mata, permitindo que o mico-leão-dourado transite por ali. Pensar e agir conjuntamente ajuda a focar os investimentos nas ações com o maior impacto positivo.
A febre amarela recentemente foi confirmada em Casimiro de Abreu, município vizinho à reserva. O que tem sido feito no intuito de tentar proteger as populações de primatas da unidade?
A Associação Mico-Leão-Dourado fez um trabalho junto com as prefeituras dos municípios vizinhos para vacinação da população. Esta ação foi feita de forma emergencial, assim que se confirmou que o surto de febre amarela havia chegado em Casimiro de Abreu. O que nós, enquanto reserva, fizemos como prevenção, foi vedar o acesso à unidade. Nós possuímos algumas equipes de plantio que trabalham na reserva, nas áreas degradadas que estão sendo recuperadas. São 30, 40 pessoas trabalhando lá dentro. E como não há certeza de como está a circulação do vírus dentro ou fora da reserva, nós suspendemos o acesso dessas pessoas até que elas fossem vacinadas, respeitando o prazo de dez dias necessários após a vacinação para que a imunização faça efeito. Esse prazo já acabou, as empresas responsáveis pelo replantio já apresentaram os cartões de vacinação dos funcionários, portanto o trabalho já foi retomado. Essa foi a nossa principal medida: proteger as pessoas, porque nós não sabemos se o vírus está circulando dentro da unidade; e também proteger os animais da rebio, porque nós sabemos que o vírus está circulando do lado de fora. É preciso ter cuidado para garantir que este impacto não chegue aqui.
Já se sabe qual o grau de suscetibilidade do mico-leão-dourado à febre amarela?
Nós ainda não sabemos a susceptibilidade específica do mico-leão-dourado, mas sabe-se que a família é susceptível, os Callithrix são susceptíveis. Por isso, é necessário manter um monitoramento constante. Felizmente ainda não houve nenhum caso entre os micos-leões-dourados.
Existe algum plano emergencial caso haja confirmação da febre amarela dentro da reserva biológica?
Que eu tenha conhecimento não, até porque é algo ainda muito recente e inesperado. Aqui no Rio de Janeiro estava tudo muito tranquilo, até que, de repente, o vírus “pulou” um espaço geográfico enorme e foi cair dentro de Casimiro de Abreu. Foi muito repentino. Para tentar impedir o avanço, foi feita uma campanha emergencial de vacinação em massa nos municípios da região, tanto Casimiro quanto Silva Jardim. E agora estão sendo feitas as pesquisas para tentar entender melhor a situação. Nós estamos recebendo pessoas do Ministério da Saúde, da Secretaria Estadual de Saúde, pesquisadores vindo coletar mosquitos e sangue de macacos. Todo o necessário está sendo feito para que se tenha uma noção do tamanho do problema.
Por enquanto, dentro da reserva não há nada. Além do mico-leão-dourado, dentro da Rebio nós temos bugios, que é uma espécie altamente suscetível à febre amarela. E o nosso pessoal anda dentro do mato e até agora não foi encontrado nenhum animal morto. Terá que ser feito um plano e esse plano será feito de acordo com o tamanho da emergência. Enquanto isso, está todo mundo junto monitorando.
Quais os principais desafios enfrentados pela reserva?
Os principais impactos que sofremos na unidade são a caça e o incêndio florestal. Poço das Antas é conhecida por esse problema de incêndio. Existem vários assentamentos rurais em volta da unidade, nas quais o fogo é tradicionalmente usado na preparação do solo. E esse fogo, quando a pessoa não toma os cuidados necessários, acaba chegando na unidade. Essa é uma questão bem problemática para nós, porque impede que áreas que poderiam já estar recuperadas avancem ecologicamente. Quanto aos desafios na gestão, em si, nosso principal problema é possuir uma equipe pequena diante do tamanho da nossa demanda. E também a quantidade de burocracia com a qual precisamos lidar.
Muitas pessoas defendem que em unidades com uso público, o visitante também funciona como um olho vigilante a mais. Como é feita a fiscalização dentro da reserva?
O visitante é um monitor natural dos parques, mas é importante lembrar que os visitantes não têm acesso a todos os locais. Os caçadores com certeza não estarão dentro da unidade em um horário e local nos quais eles corram o risco de darem de cara com um turista. Eles estão sempre nas áreas intangíveis ou caçando de noite.
Em relação à Rebio Poço das Antas, atualmente nós possuímos seis servidores do ICMBio e dois deles são fiscais. Nós perdemos muitas pessoas com o passar dos anos com aposentadoria e não está sendo feita a reposição de funcionários. Esses fiscais trabalham principalmente no combate à caça, um problema grande aqui na região. Nas comunidades vizinhas existem as pessoas que caçam pelo costume, outras pelo comércio, querendo ganhar dinheiro porque estão desempregadas. E o acesso à reserva é fácil, existe acesso por rio, por estrada e também por uma antiga linha de trem que corta a unidade. Esse trabalho de fiscalização é árduo e cansativo, mas está sendo feito diariamente.
Nós também possuímos uma câmera de vigilância estrategicamente localizada que é monitorada à distância aqui da nossa sede. Essa câmera nos ajuda a acompanhar se há qualquer indício de fumaça e de fogo dentro da unidade, e com isso monitorar de forma mais efetiva os incêndios na região.
Quais foram as principais conquistas alcançadas pela Reserva Biológica Poço das Antas?
A Rebio Poço das Antas foi criada em áreas de fazenda. Existem áreas degradadas até hoje na reserva, que ainda estão em processo de recuperação, tanto de forma natural quanto por replantio. Trabalhar em Unidade de Conservação é algo muito prazeroso. As coisas não vão na velocidade com a qual nós gostaríamos, porém elas vão. A natureza evolui. E se nós conseguirmos protegê-la, sabemos que ela avança e se recupera.
Nós já conseguimos recuperar quase 200 hectares de mata lá dentro da reserva. Sempre através de parcerias. Não somos nós que plantamos. Corremos atrás das empresas que precisam fazer reposição florestal, cedemos a área para o replantio e monitoramos todo o processo. Nós possuímos uma parceria de reflorestamento com o Jardim Botânico do Rio de Janeiro há mais de 20 anos, que permitiu grandes avanços na recuperação das áreas degradadas e que, ainda hoje, gera conhecimento sobre a flora da região. Esses plantios são acompanhados pela equipe do Jardim Botânico para verificar como está sendo a evolução ecológica.
Além disso, a melhora na quantidade de micos-leões-dourados soltos na natureza foi uma grande vitória. Não apenas nossa, mas de um conjunto de pessoas e instituições que estão lutando por isso. O reaparecimento de algumas espécies que haviam desaparecido da região também foi uma conquista para nós.
Qual a importância da parceria entre a Reserva Biológica Poço das Antas e a Associação Mico-Leão-Dourado?
Nós temos uma parceria de mais de 30 anos com a Associação Mico-Leão-Dourado, e essa união de forças entre o governo e a iniciativa privada aumenta nosso alcance de atuação. Na esfera governamental as coisas naturalmente demoram mais para acontecer, porque nós estamos submetidos à trâmites um pouco mais complicados, e a Associação possui mecanismos mais fluídos. Em compensação, existem coisas que nós fazemos e que eles não podem fazer, como exercer o poder de polícia e de fiscalização. Toda a vitória nossa aqui é conjunta. É um ajudando o outro nas suas deficiências.
A Rebio Poço das Antas e a região como um todo, é conhecida pela presença do mico-leão-dourado. Não só pela presença, mas pelo trabalho de conservação da espécie que é feito aqui. É uma espécie que serve como bandeira. Não trabalhamos especificamente para mico-leão, trabalhamos para natureza, para Mata Atlântica, para outras várias espécies ameaçadas de extinção que estão aqui na região. O bicho é bonito, charmoso, conhecido, e é um trabalho que é usado como exemplo no mundo inteiro como recuperação de uma espécie que estava em vias de extinção. Claro que muita coisa ainda precisa ser feita, especialmente com relação ao habitat, através do estabelecimento de corredores, que é o ponto focal hoje em dia.
Qual a importância da Reserva Biológica Poço das Antas no atual contexto regional em que ela está inserida?
Poço das Antas foi a primeira reserva biológica criada no país e é bastante emblemática, para além da importância natural e biológica dela. A fama da reserva é mundial, principalmente pela presença do mico-leão-dourado, uma espécie-bandeira nacional. Mas nós somos o habitat de uma grande diversidade de fauna, como a borboleta-da-praia, o primeiro inseto a ser incluído na lista de ameaçados de extinção. Hoje em dia, só sobrou aqui. Em volta é quase tudo fazenda ou área desmatada. Esse ecossistema que nós protegemos, a Floresta Atlântica de Terra Baixa, foi muito impactado por obras de drenagem para produção agrícola e construção de cidades. Nós estamos em um dos últimos refúgios remanescentes. Tudo aqui é importante.