Com a palavra: Fernando Tatagiba, gestor do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (parte 2)


Fernando Tatagiba, gestor do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Foto: Marcos Pinto
Fernando Tatagiba, gestor do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Foto: Marcos Pinto

O Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (GO) foi criado em 1961, com um tamanho original de 625 mil hectares. Sua primeira redução veio em 1972, quando o território protegido caiu para 171.924 hectares, seguida dez anos depois por outra revisão de limites  que estabeleceu o parque ao seu tamanho atual, de apenas 65 mil hectares – quase um décimo da primeira área demarcada. Esse histórico de reduções, entretanto, parece estar próximo de uma reviravolta. Uma proposta de 2001 para ampliação da unidade de conservação, barrada pelo Supremo em 2003, foi reeditada e  agora está a um passo de efetivar a expansão da área da unidade para 222 mil hectares. No caminho para consolidar esse crescimento está o governo estadual de Goiás.

Desde março de 2016 no comando da unidade de conservação, Fernando Tatagiba está na torcida para a assinatura do decreto, que pode acontecer em março desse ano. Seria o melhor presente que o biólogo poderia pedir para comemorar seu 1º aniversário na gestão do parque. Fernando faz ressalvas quanto a contraproposta do estado de Goiás, que segundo ele “não é adequada do ponto de vista da conservação nem da gestão, porque seria uma Unidade de Conservação muito fragmentada”.

Confira a segunda parte da entrevista que o WikiParques fez com o gestor Fernando Tatagiba. (Leia a primeira parte aqui):

Trilha para as Corredeiras. Foto: Mauricio Mercadante
Trilha para as Corredeiras. Foto: Mauricio Mercadante

WikiParques: A ampliação dos limites da unidade, dos atuais 65 mil hectares para 222 mil, tem sido muito discutida. A proposta existe desde 2001, mas ainda não saiu do papel, e agora enfrenta um impasse junto ao governo estadual de Goiás. Quais os desafios para aprovação do decreto?

Fernando Tatagiba: A pauta da ampliação começou formalmente no final de 2009, quando o CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) emitiu uma moção ao Ministério do Meio Ambiente pedindo a reedição do decreto de ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. O CONAMA fazia menção a um decreto de 2001, para ampliação, que foi derrubado pelo Supremo Tribunal Federal em 2003. Na época, o Supremo concluiu que as consultas públicas não haviam sido conduzidas de forma adequada, mas deixou claro que não havia dúvida com relação ao mérito e nem mesmo com relação à questões técnicas da ampliação. Visto que o parque não foi ampliado, em 2009, o CONAMA pediu a reedição do decreto. E já em 2010 o ICMBio começou o processo propriamente dito, contratando consultorias especializadas para estudos fundiários, socioeconômicos e ambientais da área a ser ampliada, e elaborando a proposta que foi apresentada em uma consulta pública em setembro de 2015. Houve três reuniões públicas para debater o assunto, em Nova Ronda, Cavalcante e Alto Paraíso de Goiás, com a participação de mais de 500 pessoas. Também foram feitas várias reuniões bilaterais e multilaterais aqui na Chapada dos Veadeiros e em Brasília, na sede do ICMBio e no MMA, que reuniram setores diversos interessados na questão da ampliação do parque. Havia expectativa da publicação do decreto em junho do ano passado, mas o governo do estado de Goiás pediu um prazo – na época de três meses -, para aprofundar o estudo de algumas questões fundiárias da ampliação do parque. O primeiro pedido de prazo de Goiás venceu em setembro, quando eles pediram um novo prazo, agora de 180 dias, para concluir suas análises e estudos, concedido pelo Ministério. Esse novo prazo termina em março.

Essas discussões técnicas e conceituais entre o governo de Goiás e o gabinete do Ministro são uma etapa normal no processo de negociação para ampliação de uma unidade de proteção integral. Obviamente a expectativa de quem trabalha no parque ou é engajado em conservação, é de que o parque seja ampliado o mais rápido possível e com os limites mais adequados possíveis, mas essa é uma etapa normal de negociação. O que se sabe é que existe uma diferença muito grande entre a proposta que foi encaminhada pelo ICMBio junto ao MMA, e a contraproposta do estado de Goiás. Isso será analisado pelos técnicos do MMA e do ICMBio para saber quais serão os impactos para gestão, para conservação da biodiversidade e para regularização fundiária. Não existe um resultado conclusivo, nem técnico nem jurídico, mas isso está sendo tratado no nível do gabinete do Ministro.

Quais as principais diferenças e possíveis problemas da contraproposta do governo estadual?

Existe uma diferença com relação ao tamanho e também ao formato da unidade. A proposta encaminhada pelo governo de Goiás a qual eu tive acesso não é adequada do ponto de vista da conservação, porque sendo ampliada da forma que eles sugerem haveria várias lacunas. Seria uma UC muito fragmentada nos seus limites. Para conservação isso não é adequado e para gestão menos ainda, porque é muito difícil fazer ações de proteção, de fiscalização, de manejo de fogo ou de pesquisa com limites similares a um Mosaico.

Do ponto de vista de governança também não nos pareceu a mais adequada porque, desde as consultas públicas até meados do ano passado, o Ministério negociou bastante com os setores representantes de proprietários da terra e com setores dentro do próprio governo federal, como o Ministério de Minas e Energia. E, ao longo desse tempo, o MMA e o ICMBio foram retirando da proposta diversas áreas que já eram produtivas para agropecuária. Obviamente não há interesse em ter um pasto dentro de um parque nacional.

Também tiramos atrativos turísticos operados por privados, assim como moradias. Hoje, nós temos a segurança de que, na área proposta, não existem moradias em número significativo.( Dá para contar na mão – e sobra dedo!) O que a gente sabe, inclusive através da imprensa, é que existem pessoas com interesses imobiliários na área. Pessoas com posse de terrenos nessa área proposta para ampliação do parque e que hoje não ocupam a área, mas que têm interesse em fazer, por exemplo, um condomínio de alto padrão na região do Pouso Alto, que é a região mais alta do Planalto Central onde estão campos rupestres de altíssima relevância para conservação da biodiversidade. Esse exemplo é real: existe uma empreendedora do ramo imobiliário que já declarou publicamente o interesse de fazer um condomínio lá nessa área. Cerca de 80 ou 90% da área de ampliação proposta para o parque não tem aptidão para agricultura mecanizada. Não existe, portanto, conflito com a produção agropecuária, o que existe é o conflito com interesses imobiliários e de especulação.

Pôr-do-sol na Chapada dos Veadeiros. Foto: Jéssica dos Santos
Pôr-do-sol na Chapada dos Veadeiros. Foto: Jéssica dos Santos

O Cerrado é um bioma que vem sendo rapidamente devastado em nome, principalmente, dos interesses agropecuários. Como gestor de uma das principais unidades de conservação do bioma, como você vê a atual situação do Cerrado?

A vegetação do Cerrado é, em geral, muito mal interpretada e mal retratada,  – por causa da predominância de ambientes savânicos -, como uma vegetação feia e pobre, o que não é verdade, em absoluto. O Cerrado é riquíssimo do ponto de vista ecológico, biológico e cultural. Aos poucos está mudando a percepção da sociedade e o Cerrado está sendo mais valorizado. Ainda assim, existe uma desproporção de recursos orçamentários de ONGs se compararmos o Cerrado com a Amazônia, por exemplo, porque existe uma preferência generalizada pelos biomas florestais. No caso do Cerrado, existe um fator complicador, porque é uma região muito propícia para agricultura mecanizada. O Cerrado é visto pelo setor agropecuário e por uma parcela grande da sociedade como uma área a ser desbravada para produção agrícola, custe o que custar. E o problema é esse, o “custe o que custar”.

Se nós conseguirmos implementar os limites de proteção estabelecidos no Código Florestal, se conseguirmos atingir a meta de diversidade – que é a Meta 11 de Aichi , aumentar a representatividade das unidades de conservação, aumentar o número de terras indígenas, é possível conciliar ocupação com conservação. Não dá para negligenciar a conservação do bioma em função da expansão da fronteira agropecuária a todo custo. Isso, para mim, é um engano histórico do Brasil. O processo de degradação do Cerrado está acontecendo de uma forma muito rápida e intensa, mas ainda há tempo. Sempre fui frequentador assíduo da Chapada e a gente percebe a mudança no caminho de Brasília para cá de uma forma muito intensa. Onde tinha Cerrado, hoje já não tem mais, virou monocultura ou pastagem. A paisagem está cada vez mais descaracterizada.

É uma responsabilidade grande fazer a gestão do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros porque, de fato, é um ícone na conservação do Cerrado. Existem outros parques importantíssimos para conservação do Cerrado, como o Parque Nacional das Emas (GO), o Parque Nacional de Brasília (DF), o Parque Nacional Grande Sertão Veredas (MG). Mas nós sabemos a importância da Chapada dos Veadeiros do ponto de vista da visibilidade, tanto é que Veadeiros junto ao Parque Nacional das Emas formam um Sítio do Patrimônio Mundial, reconhecido pela UNESCO. E a nossa ideia é abrir ao máximo possível esse livro que é o parque nacional para sociedade. Não só aos visitantes, mas também divulgar cada vez mais e melhor os atributos naturais do parque. É importante que a sociedade visite parques e conheça unidades de conservação. É bom para o indivíduo e é bom para a sociedade como um todo.

Outra estratégia é abrir o parque para os pesquisadores. Aqui no parque já foram registradas mais de 400 pesquisas e há um esforço da nossa parte em ter um diálogo cada vez melhor com os pesquisadores para ajudar a traduzir os conhecimentos que eles geram e devolver para sociedade. Inclusive, traduzir para nós mesmos, para aprimorar nossa gestão, e poder mostrar para o mundo e para sociedade brasileira o que é um parque nacional, o que nós temos aqui, nossa fauna e flora. Não é todo mundo que sabe que nós temos onça-pintada aqui ou que foram registrados recentemente 22 mamíferos de grande porte no parque e seu entorno. É preciso divulgar, e a comunicação com a sociedade é fundamental. Um parque nacional tem razão de ser para além da questão da conservação, se ele for utilizado, conhecido, visitado, apropriado pela sociedade.

Foto: Vitor Hugo Artigiani Filho
Foto: Vitor Hugo Artigiani Filho

Além das expectativas relacionadas à concessão e a ampliação da unidade de conservação, quais os projetos do parque em 2017?

Nós estamos construindo um mirante, com apoio de voluntários, em um atrativo que não está aberto ainda. Muito provavelmente esse mirante, chamado Mirante do Carrossel, estará concluído no início da alta temporada de julho, com acesso a um novo ponto de banho e um novo trecho de trilha aqui na área principal do parque.

Um outro projeto nosso, que envolve a mão-de-obra voluntária dos guias locais, é o mapeamento e caracterização de trilhas de longo curso para serem abertas aqui dentro da unidade. A previsão é estabelecer travessias no parque ligando, por exemplo, São Jorge ao município de Cavalcante ou São Jorge ao povoado da Capela. A previsão é de que essa trilha que iria de São Jorge até uma localidade chamada de Catingueiro, no município de Cavalcante, fique pronta em 2018.

Provavelmente será uma travessia de três dias, com dois pernoites. Elaborar essa travessia é um trabalho demorado e com várias etapas, inclusive administrativas, que exigem um plano bem montado, aprovado pela sede e pelas coordenações relacionadas à visitação e uso público. Pode ser necessário fazer alguns ajustes no Plano de Manejo do parque, para aí sim começar a implementação e o manejo da trilha propriamente dita, demarcando e sinalizando o trajeto. Por isso ainda vai demorar um pouco para esse projeto sair do papel. Outra meta, relacionada com a travessia, é abrir um novo portão do parque em Cavalcante.

A nossa ideia é diversificar ao máximo as atividades desenvolvidas no parque para diversificar ao máximo nosso público também. Ano passado, por exemplo, nós passamos a ter canionismo dentro do parque e atualmente estamos em parceria com uma associação de escalada do Distrito Federal para mapear áreas propícias à prática de escalada no parque. Além de atividades como a observação de aves em horários diferenciados e a observação de céu estrelado, especialmente na estação seca.

 

 

Post navigation

Anterior

Próximo