Com a palavra: Leandro Goulart, gestor do Parque Nacional da Serra dos Órgãos


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Leandro Goulart, gestor do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, diante do Morro do Açu. Foto: Duda Menegassi

Criado em 1939, um dos mais antigos do país, o Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ) é um dos berços do montanhismo brasileiro. A rede de 250 km de trilhas e travessias atraem visitantes o ano inteiro, especialmente entre maio e outubro, durante a temporada de montanha. No início de fevereiro, a mais famosa delas, a travessia Petrópolis x Teresópolis foi o palco da última caminhada comemorativa do ICMBio.

Gestor do parque desde 2011, o engenheiro agrônomo Leandro Goulart acompanhou de perto o impacto positivo do uso público como ferramenta de conservação: a implementação dos Caminhos da Serra do Mar, trilha de 51 km que cruza o parque nacional. “Os gestores e o ICMBio passaram a perceber que esse é um caminho viável para conservação (…) e veio de encontro à maior procura das pessoas por áreas naturais para turismo e lazer”, explica Leandro.

Leia na íntegra a entrevista que o WikiParques fez com Leandro:

WikiParques: Como nasceram os Caminhos da Serra do Mar, a trilha de longo curso que cruza o parque?

Leandro Goulart: Depois que assumi a gestão do parque, em 2011, participei de uma oficina no Parque Nacional da Tijuca (RJ) com o Pedro da Cunha e Menezes, quando ele era o diretor do ICMBio [hoje, ele é coordenador-geral de uso público], e o tema era trilha de longo curso e sua importância para conservação. Na época existia um estigma muito forte de que a visitação e o turismo geram a degradação do ambiente protegido e ele trouxe esta outra visão, do uso como ferramenta de conservação, com um monte de exemplos de trilhas de longo curso em outros países, como a Appalachian Trail, nos Estados Unidos. Aqui no parque nós sofremos com a carência de servidores, não conseguimos estar em todos os lugares, e a oficina despertou em mim a seguinte questão: por quê não trazer o usuário mais para dentro do parque, como aliado da conservação? E lá mesmo, com o apoio do ICMBio, eu comecei a pensar em como seria uma trilha de longo curso no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, para trazer caminhantes e inibir a presença de ilícitos como caçadores, passarinheiros e palmiteiros.

Para construção dos Caminhos da Serra do Mar nós aproveitamos trilhas herdadas– como chamamos –, que são: o Caminho do Ouro, do século 18; a trilha Cobiçado x Ventania; e a trilha Uricanal. Todas elas estão dentro do parque e já existiam, mas não possuíam essa configuração única. E nós vimos que era possível unir o final de uma com o começo da outra e formar esse grande percurso.

Como foi o trabalho para implementação dos Caminhos?

Foi um processo! Da idealização à implementação em campo e à sinalização; ao trabalho com os condutores para eles conhecerem a trilha e estarem aptos a levar os visitantes; mostrar às agências de turismo para que elas pudessem vender o Caminho; até a divulgação na mídia. Nós temos o marco zero, a primeira expedição que fizemos, em 2012, quando nós mapeamos tudo, fotografamos bastante e registramos todos os ilícitos que encontramos: o número de ranchos de caça, de árvores cortadas, de atalhos… E anualmente nós refazemos essa expedição nos Caminhos para reforçar a sinalização e monitorar se a visitação de fato está ajudando a reduzir os crimes ambientais no percurso.

Atualmente, qual o traçado dos Caminhos da Serra do Mar?

Aqui no parque, os Caminhos da Serra do Mar começam na trilha do Ouro (5 km), em Magé, numa altitude de 20 metros. De lá seguem até o município de Petrópolis, na entrada da trilha Cobiçado x Ventania, que fica em Caxambu, um bairro rural do entorno do parque. Aliás, nós nos preocupamos bastante em interligar os bairros do entorno do parque porque dali podem surgir os condutores, os pontos de camping e de apoio. O segundo dia de caminhada é na trilha Cobiçado x Ventania (12 km) que é linda, mas possui um alto nível de dificuldade. O terceiro dia é a trilha Uricanal (6 km), que atravessa o parque e chega no bairro do Bonfim. Os últimos três dias são os da travessia Petrópolis x Teresópolis (28 km). São, portanto, 6 dias de caminhada dentro do parque, mas a nossa ideia é trabalhar junto com o Parque Estadual dos Três Picos (RJ) para ter a continuidade da trilha por lá.

Por isso é um caminho sem início nem fim, até porque a Serra do Mar é muito maior do que apenas os 51 km da trilha de longo curso que implementamos no parque. Existe inclusive a possibilidade de conectarmos os Caminhos com a Trilha Transcarioca (RJ), passando pela Estação Ecológica Guanabara (RJ) e a Área de Proteção Ambiental Guapimirim (RJ).

Fotografia de Duda Menegassi
A sinalização do Caminhos da Serra do Mar. Foto: Duda Menegassi


Quais os resultados do monitoramento anual nos Caminho da Serra do Mar?

Na primeira expedição que fizemos, nós mapeamos o local por onde iria passar a trilha e constatamos diversos atalhos e pontos de caça. Nos anos seguintes de monitoramento nós vimos que esses pontos de caça já não são mais usados. Não encontramos mais vestígios de abrigos como fogueiras e panelas, e o número de atalhos para esses pontos de caça também diminuiu, porque o caçador tem medo de cruzar com um visitante e ser denunciado. Eu nem digo que ele tenha parado de caçar, mas ele teve que procurar um lugar mais escondido. Além disso, os palmitos estão crescendo. Na primeira visita que fizemos na Trilha do Ouro nós não vimos nenhum palmito-juçara (Euterpe edulis) que é característico daqui e da Mata Atlântica. E nós levamos algumas sementes de palmito e fomos jogando pelo caminho. Hoje em dia nós vemos essas mudas crescendo e parece que os palmitos vão conseguir recolonizar aquela área porque não estão sendo retirados. Nos locais onde há presença de visitantes nós também não encontramos gaiolas com aves presas. Antigamente eram muitas, toda casa tinha um pássaro preso. Hoje nós não vemos mais isso, pelo menos não no trecho dos Caminhos da Serra do Mar. São resultados que comprovam a importância do uso público.

E como foi a construção dessa percepção de que o uso público pode ser um instrumento de conservação?

Hoje as pessoas do próprio ICMBio já abraçam a ideia. Antes prevalecia a ideia de parque fortaleza, todo fechado à visitação. Hoje, a partir principalmente dessas iniciativas que se consolidaram como a Trilha Transcarioca e o próprio Caminhos da Serra do Mar, os gestores e o ICMBio passaram a perceber que esse é um caminho viável para conservação. E não é caro porque quem faz o monitoramento é o próprio visitante e a sinalização é rústica. Essa visão foi incorporada institucionalmente ao ICMBio e veio de encontro à maior procura das pessoas por áreas naturais para turismo e lazer. Ou seja, juntou a nossa vontade de incentivar o uso de trilhas e visitação aos parques com uma demanda maior da sociedade em visitar esses espaços. E nós precisamos acompanhar essa demanda. Aqui nós ainda temos os abrigos, placas mais elaboradas, mas é preciso sinalizar o parque para sociedade e não temos recursos para fazer isso com superestruturas, por isso a escolha pela sinalização rústica. Mas não adiantava a gente fazer isso se não houvesse a sociedade querendo caminhar.

Há muita resistência ainda com relação à sinalização no parque, em especial na travessia Petrópolis x Teresópolis. Qual a importância de fazer essa sinalização?

A travessia Petrópolis x Teresópolis vem recebendo a cada ano um público maior e mais diversificado. Devido à diversidade do público visitante e a intensidade da visitação, ações de manejo se fazem necessárias, tanto para a manutenção do traçado, para evitar erosões, atalhos e pisoteio excessivo, como para manutenção da integridade do visitante. A sinalização pintada com pegadas amarelas e pretas foi feita para atender ao público visitante do parque, manter a integridade da trilha e também para inserir a travessia no sistema nacional de trilhas, que está sendo implantado pelo ICMBio. A sinalização com pegadas pode não ser a mais bonita, mas considerando a falta de recursos foi a mais indicada além de ser a menos “vandalizável”. Ela vêm para complementar a sinalização que já existia anteriormente, feita por totens e setas chumbadas. Houve uma certa resistência de alguns montanhistas, mas pudemos observar que o grande público ficou satisfeito com o resultado.

O Parque Nacional da Serra dos Órgãos é uma referência entre montanhistas. Qual a importância para o parque de receber a última travessia comemorativa do ICMBio?

Para nós é uma honra. Até porque, não poderíamos ficar de fora de um projeto do ICMBio que selecionou 10 travessias no Brasil. Justamente pela Petrópolis x Teresópolis ser uma das travessias mais tradicionais e visitadas do país. E foi muito legal o esforço de fazê-la mesmo fora da temporada, que é entre maio e setembro. O início do ano não é a época mais apropriada para fazer este tipo de percurso e, mesmo com o risco de enfrentar um temporal na montanha, as pessoas toparam participar do evento. Justamente para que o parque, pela importância que tem para os montanhistas, não ficasse de fora desse projeto. E é uma via de mão dupla, tanto a gente fica orgulhoso de fazer parte das comemorações, quanto a presença da Serra dos Órgãos enriquece esse projeto, por ser uma das travessias mais emblemáticas do país.

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Participantes da travessia comemorativa do ICMBio, realizada no início de fevereiro no parque. Foto: Duda Menegassi


Quais os maiores desafios de gestão enfrentados hoje no parque?

Eu enxergo como nossa maior necessidade é a capacidade de dar continuidade em alguns serviços. Existem serviços sob nossa responsabilidade que muitas vezes não conseguimos manter. Por exemplo, existe uma piscina natural dentro do parque que durante o verão é o nosso principal ponto de visitação. E muitas vezes nós não conseguimos manter a piscina aberta ao público por falta de uma estrutura que permita a contratação de um guardião para piscina [salva-vidas]. Nossa trilha suspensa é outro exemplo, já está fechada há algum tempo. O ideal seria conseguir incluir esses serviços dentro do edital de concessão porque é uma frustração para o visitante chegar no parque e encontrar um atrativo fechado. Esses problemas podem ser corrigidos em um próximo edital, incluindo a manutenção de alguns atrativos que nós percebemos que não damos conta sozinhos. Precisamos de um edital mais robusto, que abarque outros serviços. Atualmente a Hope, concessionária do parque, faz a cobrança de ingresso, a gestão dos abrigos de montanha, dos campings, do estacionamento e do centro de visitantes. São 5 serviços. O ingresso é o que gera mais receita assim como o abrigo durante a alta temporada, mas como a concessionária precisa mantê-lo o ano inteiro, é uma receita equilibrada. Na época em que fizemos o edital, há 10 anos, muitas coisas que fazemos hoje não estavam previstas. Nós estamos trabalhando agora no lançamento de um novo edital, mais amplo, que inclua esses serviços.

Outra necessidade do parque é ter uma equipe mais estruturada de monitores e pessoas que consigam estar no campo para mostrar presença institucional e fazer a sinalização dos atrativos. Apesar de termos um número de servidores considerado grande comparado a outras unidades de conservação, nossa equipe possui uma média de idade avançada. Dos 12, seis já podem se aposentar, então podemos perder metade da nossa equipe. São pessoas que conhecem bem o parque, mas já não tem o mesmo gás de ir a campo. Um desafio é contratar pessoas que possam fazer o trabalho de campo. O parque possui uma das maiores redes de trilhas do Brasil com 250 km de trilhas mapeadas, e várias ainda carecem deste trabalho de sinalização. Precisamos ter perna e gás. Para isso também precisamos incentivar parcerias, inclusive parceiros que adotem trechos de trilha, como fazem na Transcarioca.

Além disso, um desafio muito forte que nós estamos enfrentando é de cunho político, como a mudança de coordenação por indicação, algo que o ICMBio não tinha antes. Portanto nesse momento eu enxergo como um desafio até mesmo se manter na gestão e dar continuidade ao trabalho com essa insegurança e instabilidade. O desafio orçamentário é muito grande também. Nós trabalhamos com o mínimo do mínimo. Nós sabemos que temos que fazer manejo de trilha e sinalização, mas às vezes não conseguimos os materiais necessários para que isso aconteça.

Qual o tamanho total da equipe do parque?

Nós temos 12 servidores, além de três recepcionistas terceirizados, um para cada portaria, e 8 monitores contratados pela CRT (Concessionária Rio Teresópolis) para monitorar acessos irregulares ao longo da rodovia Rio x Teresópolis. Fora isso há os brigadistas presentes durante a época de incêndios entre maio e outubro. Foi publicada em 2017 uma Medida Provisória [MP nº 809, de 1° de dezembro de 2017] que permite a contratação dos brigadistas por um período maior, o que significa que eles poderão nos apoiar em outras atividades como guarda-parques. Isso irá nos ajudar muito no período de baixa incidência de fogo.

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Visual do primeiro dia de travessia Petrópolis x Teresópolis. Foto: DudaMenegassi


Qual a situação da regularização fundiária no parque?

O Parque Nacional da Serra dos Órgãos é um dos parques com maior problema de regularização fundiária do país. O parque tem 20.024 hectares e nós temos hoje apenas 14% da nossa área regularizada. O que está regularizado por exemplo é a área da sede de Teresópolis e o Sino. É pouquíssima coisa. Mas ironicamente o parque passa a impressão contrária porque como é um parque antigo [1939] e ele foi delimitado logo após a criação, mesmo as pessoas com propriedades aqui dentro, sabem que é território do parque e não criam problema. Nós não temos conflito fundiário. Nós temos um baixo índice de regularização fundiária, mas os proprietários não criam problemas, por assim dizer. A nossa portaria em Petrópolis, por exemplo, está na propriedade de um vizinho que cedeu o espaço para construirmos. O abrigo do Açu faz parte de uma grande propriedade, a Fazenda Boa Esperança, que vai desde o Jacó, na margem da rodovia, até lá em cima. Nós acabamos fazendo uso público em áreas que não estão regularizadas porque os proprietários respeitam que aquela é área do parque. É algo que o parque enxerga que precisa ser solucionado a longo prazo, mas não está na nossa lista de prioridades agora, exatamente porque não há o conflito. Quando algum proprietário vem requerer a indenização, nós instruímos sobre o processo, mas isso depende da liberação dos recursos pelo governo, está fora da nossa alçada.

Quais as expectativas e metas para 2018?

Uma das expectativas do parque este ano é conseguir finalizar a sede em Petrópolis. Acho que essa é uma prioridade máxima para conseguirmos implementar uma estrutura de apoio ali. Não só comprar a terra, mas também conseguir algum recurso, seja pelo ICMBio ou por alguma emenda, para implementar a sede ainda em 2018. Petrópolis merece porque é o maior município do entorno do parque e a visitação aqui tem crescido muito, sem falar que os montanhistas normalmente começam a travessia por Petrópolis. Ter uma estrutura de apoio aqui, uma loja de souvernirs, um ponto de alimentação e de abrigo ou camping, é essencial. Essa é uma das nossas metas de uso público. Outra meta é finalizar o edital de concessão, porque isso irá resolver diversos problemas atuais e lançar o próximo edital ano que vem. E nós também precisamos revisar o plano de manejo, que é de 2008, e alterar algumas normas que às vezes nos engessam. Até mesmo para viabilizar os Caminhos da Serra do Mar precisamos alterar algumas regras, como permitir o camping em determinadas áreas, já que é uma trilha de 6 dias e temos apenas o Sino e o Açu como pontos oficiais de pernoite. Precisamos flexibilizar também algumas regras como a entrada na Trilha do Ouro que hoje exige a assinatura de um termo de risco pelo visitante.

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O Garrafão em meio às nuvens, paisagem do segundo dia na travessia Petrópolis x Teresópolis. Foto: Duda Menegassi

 

 

 

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