O Refúgio de Vida Silvestre do Arquipélago de Alcatrazes (SP), no litoral norte paulista, acaba de completar um ano e já tem um plano de manejo que deu início ao processo de abertura da unidade de conservação para o ecoturismo. A trajetória bem sucedida não é fruto do acaso: o refúgio herdou, e compartilha, com a vizinha Estação Ecológica de Tupinambás (SP) a equipe, a estrutura e até a sede administrativa. Além disso, conta com um aliado de peso: a Marinha brasileira.
As duas unidades são geridas conjuntamente, através do Núcleo de Gestão Integrada (NGI) de Alcatrazes. A gestora do núcleo, a bióloga Kelen Luciana Leite, é uma veterana na gestão do local. No ICMBio desde 2008 e trabalhando em Tupinambás desde 2010, ela participou ativamente dos estudos para a criação da unidade que viu nascer e agora prepara o mais novo desafio de gerenciar o primeiro Refúgio de Vida Silvestre do Brasil aberto a visitação.
Confira a entrevista que o WikiParques fez com Kelen Leite:
WikiParques: Como está sendo o processo de implementação da unidade, já que ela tem um pouco mais de um ano?
Kelen Leite: É importante ressaltar que, na verdade, conseguimos fazer esse plano de manejo em oito meses, muito pelo trabalho que foi feito antes pelos pesquisadores. O levantamento de dados, que embasou nosso planejamento do Refúgio em tempo recorde.
O fato de a ser um núcleo de gestão integrada com a Estação Ecológica Tupinambás, que já tinha equipe, sede administrativa, barco, ou seja, uma estrutura já pronta, também foi um dos componentes que ajudou a acelerar esse processo, tanto na implementação da unidade quanto na elaboração do plano de manejo. E outro componente que ajudou bastante foi a questão do apoio da sociedade civil local. Esse processo de plano de manejo foi discutido entre os atores e a gente não teve nenhuma grande resistência política. O conselho foi super pró-ativo em relação ao plano de manejo e com isso também, a gente teve um processo que andou sem grandes resistências.
O conselho da Estação é o mesmo do Refúgio?
São os mesmos representantes, mas por serem duas unidades de conservação, o SNUC prevê que cada unidade de conservação tenha o seu conselho. Então, são duas portarias, o funcionamento é conjunto e são os mesmos representantes.]
O plano de manejo das duas unidades estão juntos?
Sim, estão juntos. A gestão conjunta, o NGI, não é só a questão da parte administrativa, é a questão da parte do território mesmo. Então, hoje enxergamos aquilo ali como território protegido, território único até onde a área da estação ecológica tem normas mais restritivas e a área do Refúgio, teremos algumas normas voltadas mais para o ecoturismo e ao uso público, mas no contexto do plano de manejo, o território é o mesmo e o planejamento dele está num documento só.
Qual o tamanho da equipe do núcleo?
Hoje nós estamos com oito analistas ambientais. Não é o suficiente, mas no contexto Brasil, nós somos privilegiados. Temos uma equipe de terceirizados: quatro vigilantes, dois marinheiros e uma recepcionista. São sete. E a nossa grande força de trabalho é reforçada potencialmente pelos voluntários. Hoje, temos uma lista de 600 voluntários inscritos. A nossa demanda por voluntariado na cidade é muito grande. Não temos estrutura para atender, porque precisaríamos de um servidor para coordenar. Mas o corpo de pessoas interessadas em ser voluntárias na unidade é bem grande. Isso potencializa a nossa força de trabalho principalmente no campo de maneira bem significativa.
Então, em nossas tarefas em campo, temos alguns projetos que demandam muita mão-de-obra especializada, que é o caso do manejo do Coral-sol e do mergulho em área aberta. Temos as atividades de limpeza e atividades de apoio e pesquisa. Nessas três atividades, o apoio de voluntários é fundamental. Nós precisamos de mais gente do que o tamanho da nossa equipe, por isso o voluntariado nos ajuda bastante.
Qual o desafio de fiscalizar as duas unidades?
O desafio é um desafio típico de uma unidade marinha. Sofremos uma quebra de paradigma de gestão. Eu acho que a nossa gestão de unidades de conservação, as estruturas que hoje existem, foram muito planejadas e criadas para servir unidades terrestres. E as demandas de unidades marinhas são completamente diferentes.
Por exemplo, para visitação, você não têm condições de estabelecer uma portaria, você tem que pensar em mecanismos inovadores de controle da visitação. Para fiscalização, a gente não tem cerca, a gente não tem como delimitar a unidade, você tem, de novo, pensar em mecanismos inovadores para contemplar a fiscalização dessas áreas.
Outro problema que enfrentamos é o custo da logística náutica, que é altíssimo. Então, com o valor de se manter um barco, hoje, com certeza, manteríamos quase 100 carros, que é o meio de fiscalização de uma unidade terrestre. Além do custo de manutenção de embarcação ser altíssimo, a gente tem uma outra demanda, que é perfil de pessoal e de servidor para trabalhar embarcado. Tem que ser uma pessoa que não enjoa: se enjoa, você coloca ela no mar dois, três dias, ela não consegue fazer o trabalho. A pessoa tem que estar disposta a ficar no frio, na chuva e no vento. Estar disposta a pegar mar ruim, estar disposta a se colocar em risco.
Nossa área é em mar aberto. Se na estrada quebra o carro, você pára no acostamento e consegue chamar alguém. No mar não. Se quebrou o barco, você está no meio de uma tempestade, você está em risco iminente ali, não tem como buscar abrigo em mar aberto. Essas são particularidades das unidades marinhas que para nós ainda é desafio, para a parte tanto da gestão, quanto da fiscalização.
Estamos pleiteando a compra de uma embarcação maior, que tenha capacidade de navegação em nossos mares, que são revoltos, agitados. E essa embarcação vai ficar com uma base fixa no arquipélago. O objetivo é que ter uma estrutura mais permanente lá. Também estamos fazendo um projeto para instalar um sistema de câmeras e de radares na ilha. Com isso, além da presença física – que eu acho que não pode ser dispensada – podemos estar lá.
Temos monitoramento para embarcações grandes, acima de 15 metros. Elas são monitoradas pelo PREPS [Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações por Satélite]. Mas o nosso grande problema, no arquipélago, hoje, é a pesca amadora e ilegal. A pesca industrial, ela raramente acontece na nossa área, até porque era uma área da marinha e esteve fechada por muito tempo, não existe tradição de pesca lá dentro. Agora, o nosso problema é com a pesca amadora e a pesca de pequena escala. Apesar do impacto dessa pesca ser muito menor do que da pesca industrial, ela acontece de uma maneira ilegal com uma frequência muito maior.
Quais são as pesquisas científicas realizadas nas unidades?
Há uma lista relativamente grande de pesquisas. Mas temos focado nas pesquisas de monitoramento do bentos e na biomassa de peixes. Biomassas porque vivemos, hoje, a grande crise da pesca e essas pesquisas apontam que o Arquipélago é efetivo na conservação dos peixes recifais. Hoje, de todos os lugares levantados na costa do Brasil, Alcatrazes é seguramente um dos que possui a maior biomassa.
A região sudeste-sul é a que tem maior biomassa. Se compara à do Atol das Rocas, que é uma área extremamente conservada, e isso não só respalda a gestão, mas também nos permite acompanhar a eficiência da fiscalização. Já que a pesca dentro da unidade é, na grande maioria, amadora e seletiva, monitorando alguns grupos – por exemplo, serranídeos, badejos e garoupas -, conseguimos acompanhar a pressão da pesca irregular. Então, temos focado em apoiar as pesquisas que tenham condições de dar esse respaldo de dados de gestão.
Em relação ao uso público, você disse que seria um uso público experimental. Já têm prazo para esse experimento?
Nós acreditamos que em torno de 1 ano e meio, 2 anos. É muito difícil isso que fizemos, planejar uma atividade ainda não implementada. A ideia dessa visitação experimental é que possamos refinar esse planejamento e, após esse período de “refinamento”, vamos ter a publicação de uma nova portaria que vai ser mais permanente sobre a visitação.
Qual o papel das Forças Armadas na unidade de conservação?
Hoje, a prevenção da poluição hídrica, a gestão patrimonial, a Ilha de Alcatrazes e a Ilha do Farol ainda são da Marinha, assim como salvaguardar vida humana no mar. Também a parte de controle da navegação (se as embarcações realmente estão aptas a navegar) porque é uma área com demandas de navegação específicas. E a questão do aprestamento [área de preparação (de navio ou força naval) para realização de determinada missão] de exercícios militares. Para isso ficou a Ilha da Sapata que está na zona de amortecimento, para que desenvolvam essas atividades.
Como será a visitação?
Nesse momento há uma confusão sobre a abertura da visitação, como se fosse uma coisa imediata e, na verdade, o nosso interesse agora é mostrar que é um processo. Estamos tendo todo um cuidado para que esse processo seja planejado, seja controlado. Temos um prazo para o cadastramento das empresas, um prazo para a formação dos condutores. A portaria [assinada no dia 13], foi apenas um marco legal para nos dar respaldo legal para começarmos esses processos. Ainda tem um certo caminho até a visitação efetiva.
Eu acho que até o final deste ano ou o começo do ano que vem. O curso de condutores já está programado para última semana de novembro e vai demorar uma semana. E a partir do cadastramento das empresas [45 dias contados a partir da publicação da portaria], teremos mais 30 dias para as emissões das autorizações. Então, com as empresas autorizadas, com condutores formados e a com a instalação de poitas [blocos de concreto colocados no fundo do mar com uma bóia para sustentar embarcações] no arquipélago, a visitação pode ocorrer.
**editado em 22.09.2017 às 16h49